26 de jun. de 2011

Quem Eu Sou.


Empurrou-me direto a cabeça na face das pedras. Uma cabeça ensangüentada, ferida, desfigurada. Eu já quase desistira, Ava estava conseguindo novamente. Seu propósito sempre fora o de me destruir e pouco a pouco ele vencia essa batalha.
Não implorei pelo perdão, pois como fui um dia, meu orgulho me é a coisa mais forte e digna que tenho carregado desde então. Talvez até ele se desfaça um dia, mas só talvez...

- Você pediu por isso, irmão!

Tive medo. A voz de Avael nunca pareceu tão firme e imperiosa como era agora. Eu tremia, chorava como uma criança sem rumo, perdida de seus pais, a qual fora abandonada à beira da estrada, desconhecendo o caminho de casa. Tudo era negro como o breu da noite e não havia luz suficiente para que meus olhos enxergassem e fossem guiados por ela.

Depois, Ava me fez virar a mesma cabeça de aspecto irreconhecível para que um espelho em pedaços retratasse meu reflexo vergonhoso e caído.

- Olhe para sua própria desgraça. Você consegue lidar com ela?

Não, irmão!”. Eu tive repulsa em olhar para mim mesmo. Assim como é natural uma folha de árvore cair no outono fora natural eu não conseguir encarar a mim diante de pedaços espatifados de vidro. Estava tão horroroso, tão monstruoso que pude crer temer a minha própria imagem.

Durante longas horas, intermináveis horas, meu corpo fora exposto as mais cruéis pestilências. Senti minhas asas serem navalhadas e quando as toquei quis morrer: eram apenas pedaços de nada cravados em minhas costas, como tocos podres de árvores num terreno acidentado, devastado, sem vida.

Como era justo, prendi minha respiração e fechei minha boca. Deixei que o sangue me sufocasse. Desejei tanto que aquilo tivesse um fim... enquanto Avael, sobre mim, abria sua envergadura de asas triplamente maior que seu corpo, enegrecidas, tomadas pela mesma coloração do céu depois do fim do dia e empurrava contra meu coração sua lança afiada eu... sorri. Minhas mãos não mais resistiram, soltaram-se do cabo. Minha vida estava sendo entregue.

Então fechei meus olhos à luz de um brilho intenso e cegante e em razão de um grande cansaço que tomara meu corpo. Eu não sentia mais as ranhuras, as fendas sangradas ou qualquer dor. Só... descansei. Ava me abraçou, me envolveu.

- Este é quem você é, Misa...

E eu aceitei.

21 de abr. de 2011

Perdido

Suas mãos estavam unidas, ora uma sobre a outra, ora entrelaçadas. Eu os observava de longe, num canto do qual nunca precisariam fixar os olhos surpresos com certa paisagem. Não era estratégico, eu simplesmente estava ali, não era minha culpa que por um acaso começasse a ver e não ser notado. Em todo o caso, esse é o meu legado.

Estavam felizes... É, estavam. Eu contemplei seus sorrisos, aquilo me contagiava de uma forma incerta, pois não sorria como eles ou suspirava por parecerem tão magicamente ligados, talvez eu estivesse lamentando. Talvez eu estivesse esperando que alguém olhasse para mim e se divertisse do mesmo jeito. A vontade de me tornar humano me consumia e definhava minha alma.

Eu estava apaixonado. Sim! Apaixonado! Apaixonado pela forma como sorria, pela coloração de seus cabelos, por lembrar alguém famoso quando via a silhueta do perfil de seu rosto - eu ria bobo por conta disso. O tom de voz me inebriava, o jeito de se vestir e se comportar... a timidez, a contenção... Por vezes termos trocado olhares e ainda assim me ver invisível.

Apanhou a mão de sua companhia e se afastou, saía assobiando uma música qualquer, balançando a cabeça ao ritmo agitado. Sorria bonito para todos à volta, soprava a fumaça da boca despreocupadamente... Suspirei, eu escolheria sentir o cheiro e tossir sem problema nenhum, ao menos estaria mais próximo e aí finalmente me notaria.

Segui por um caminho diferente ao da minha silenciosa paixão, e deus, como pode acontecer? Eu me perdi!

25 de mar. de 2011

Você Consegue?

- Sinto falta da sua voz. – tremi ao dizer.

Incontáveis vezes eu repeti a mesma coisa a mim mesmo: “sinto falta da sua voz”. Por que, eu me pergunto? É esta saudade que me fere o orgulho e é ele quem não me deixa procurá-lo. O que fazer? Por favor, me diga! Causei mal, pretendo me redimir! Dê-me forças! Dê-me forças, pois não as encontro! Não o encontro... fui cegado pelo ego, perdi meu lugar como anjo que era. Fui condenado. Caí, me despedacei, sou mera carne, mero... nada. Medíocre é o que se resume de meu ser, medíocre são meus pensamentos. Dê-me forças, pois estou perdido. Pois não te ouço mais, pois fui ignorante e egoísta... Perdoe-me por ter me ausentado, perdoe-me por voado para longe e não mais voltado, perdoe-me porque eu pequei e estou arrependido. Falhei contigo, falhei contigo...

- Você consegue?

27 de out. de 2009

Não os abandonei

Não os abandonei! Porém estou mais silencioso que de costume...
Tenho continuado observando cada passo e trejeito de meus protegidos, um tanto mais distante que o habitual, mas sempre prometendo dedicar-me a guardá-los.

Não me recordo de ter ficado tão contente quanto no dia em que a vi tomar suas próprias medidas e decisões... Estava radiante! Ainda metida no meio de muitos problemas, mas aquele era o início do fim de tantos outros. Lembro-me de meu coração impaciente querendo resgatá-la, descrevendo passos seguintes a tomar caso o fato demorasse muito mais a se resolver. Eu teria que enfrentar por ela e não me faria mal algum! O que me fazia recuar era a certeza de que tomaria para mim conhecimento inútil, tornando seu amadurecimento precário e tardio... Não o fiz, embora desejasse, no mais íntimo, terminar com tudo de uma vez. Erguer a lança e bradar a vitória!

Sentou-se ao meu lado. Eu estava agachado, empoleirado com o rosto virado em sua direção, sem sequer ser notado. Minhas mãos estavam unidas diante de meus joelhos e minhas asas retidas em minhas costas reluzindo fracamente o luar. O ambiente estava calmo, mas não em sua mente... Ela parecia estar coberta por dúvidas e demoraria certo tempo para que não houvesse mais nenhuma linha de preocupação em sua face. Apenas esperei pacientemente o momento certo para que conseguisse ouvir algo sair de entre seus lábios...

- Você está aí, não está? – ela balançava os pezinhos irrequietos pendurados além do parapeito da janela de seu quarto. Eu sorria de sua inocência, pois ela se referia a um ser imaginário que gostava de chamar de Tuuli.

- Eu sei que está. Calado, mas posso sentí-lo... – esticou a mão e traspassou sem querer o espectro invisível de meu rosto. Cerrei por completo os olhos e deixei que me tocasse e se sentisse acompanhada, segura...

Sorri para ela enquanto a mesma iniciava uma canção baixinha, com voz quase que forçada, porém com todo encanto que tinha direito...
Não demorou nada até que entrasse de volta e fechasse a janela ao comando de uma voz impetuosa que saia de dentro da casa. Quase tive um sobressalto, mas me deixei levar pelo resto de canção que foi carregada pelo vento.
Continuei lá, como se a voz fervorosa tivesse servido para mim. Lancei um olhar rente a enorme lua e seu tracejado prata, desejando-lhe boa sorte.
Sorria apaziguado: eu não os abandonei. Por mais uma noite eu iria permanecer em paz. Leve, imaculado e livre...

20 de jul. de 2009

Oceano ciano

Estava tranqüilo, sentado a beira do píer dando boas-vindas silenciosas ao Vento que há tanto tempo servira-me de resguardo. Ah, a doce calmaria... Tudo tão silencioso, mas tão irritante ao mesmo tempo... Mandava que carregasse pra longe de mim os sentimentos de dúvida, minhas mensagens vagas, minha indiferença...
Tão logo o tempo corria pelos finos dedos da vida, trazendo e manchando minhas asas de muitas conversas, muitas lutas, muito choro e muita vitória... Lembro-me que mesmo aqui onde estou fui confrontado por palavras espertas que me consternaram, me fizeram calar e novamente achar que em vão uso a língua para alertar. Olhando o horizonte, pra esse oceano ciano, sorri involuntário quando um dia balancei os braços comicamente pra alguém que estava perto, alguém que me falava sobre o segredo desse mar e o eterno romance das ondas tocando-se. Fixei o olhar na espuma salgada, o píer era tão largo que por um momento pensei estar dentro das águas...
- Gabriel se fora... – eu lhe disse enquanto sorria matreiro.
Ela me olhou surpresa. Em minha forma humana havia me confundido.
- “O Mensageiro” está ocupado agora, e os caminhos mais áridos não os confiaram a ele...
Sentou-se ao meu lado, não parecia temer... De tempos em tempos dizia algo. Era tão forte quanto aparentava, embora seus argumentos inspirassem fragilidade. Tão sábias eram suas palavras no mesmo instante que me surpreendiam e me chocavam. Como um ser daqueles conseguia facilmente intrigar-me? Ofereci minhas asas como abrigo, pois senti que poderia confiar, que era recíproco, que não havia veneno nem falsidade na maciez evidente de sua língua e na suavidade plumosa de seus lábios... Eu poderia rebuscar o ar aliviado...
Segui na frente, mas não me condenei a um cárcere, não eu que sou “O Livre”! Ela havia fincado os pés no píer, observado minhas asas ruflarem incandescentes e não tirou os olhos delas, não até que a cor do oceano a inebriasse...
- O andarilho das águas está prestes a ser tragado por suas próprias origens, prestes a quebrar os remos...
Ela parou. Em sua teimosia esperou que os instantes lhe respondessem como quisesse.
- A resposta, muitas vezes, pode estar bem abaixo do seu nariz...
Sumi dentro de um raio de sol, ao que primeiramente me assemelhei. Voltei a ter as asas alvas em companhia, o Vento, a melancolia. Que outra injustiça cometi para não ter-lhes logo?

17 de jul. de 2009

Like rain with pain

- Debaixo da chuva muitas pessoas se sentem renovadas... ou, como acontece no geral, encharcadas, com frio e arrependidas por terem saído na rua num tempo tão ruim. A vontade é de chegar logo em casa, de mudar as roupas, aquecer-se e tomar alguma coisa bem quente, só assim se sentiriam revitalizadas... É, agora tudo muda... Talvez eu seja o mais estranho: desta vez a chuva e o vento congelante abrasaram meu coração... Não via coisa melhor senão deixar que cada gota gélida de água caísse sobre a pele e a arrepiasse por inteiro. Permiti que todas as minhas roupas fossem molhadas e o contrário de que essas muitas pessoas possam sentir, não... Eu não me renovei...
Levei enxurrada de poças enormes de água suja na cara, daqueles carros que sem dó adoram sacanear um coitado que passa na rua... Não fazia diferença. A única coisa com que realmente eu deveria me preocupar era em ouvir o ploc ploc do gotejar da chuva, dos pingos que iam da ponta dos meus cabelos iluminados até o chão. Minhas costas já doíam por tanto tempo tê-las deixado inclinadas e meu cotovelos pareciam tão frágeis quanto vidro, enquanto, por horas, estiveram colados aos joelhos. Minhas mãos pareciam duas velhas senhoras, já passavam de seus 95 anos, tão enrugadas que chegavam a dar pena... Se eu me levantasse desse banco de praça agora certamente que a cada passada meus coturnos fariam barulho como plástico sendo machucado. Não querendo tirar a atenção de ninguém, e ninguém estava ali, permaneci subordinado de chuva e frio... Um poste de luz laranja clareando minha sombra, o gosto salgado na boca e a solidão... Não sou como as pessoas que gostam de lareira e chocolate quente, neste momento prefiro mil vezes sentir o que verdadeiramente um ser humano sente. E mesmo que esses litros de água não façam nenhuma diferença, eles só me ajudam numa coisa: limpam meu rosto da sujeira das poças e tornam o gosto da boca agridoce...



12 de jun. de 2009

Solitude

Eu hoje me sentei no lugar mais alto que pude encontrar. Eu até consegui ver o horizonte desaguando verticalmente, embarcações sendo engolidas por ele, adentrando aquilo que chamam de “infinito”. Poderia ver tudo e sentir cada um dos ventos se encontrando, tocando-se por um longo espaço de tempo até seguirem um só sentido... Eu achava aquilo romântico demais, até em meus dias mais sentimentais o beijo dos ventos em minha face e asas me faziam querer chorar... O queixo fino tomava conta da palma da mão, os joelhos dobravam e os pés tocavam a pedra fria. A figura melancólica de tão vastas asas claras estava sozinha, empoleirada e imóvel sobre um altar qualquer em que conseguia ver qualquer coisa...

As horas se arrastavam com suas correntes pesadas, provocando um barulho que não me tirava a paz, porém. Paz essa que fazia intricar os dentes, o excesso de tranqüilidade durara pouco... Sombreando os olhos com a mão consegui ver outro par de resplandecentes asas debatendo-se quase sendo tragada pelo horizonte abismal. Meus instintos trouxeram-me de volta, eu queria planar até lá e resgatá-lo, mas... A mão desceu até a pedra, suportando meu corpo para não inclinar-se para frente ao sabor do apaixonado vento. A cabeça pendeu para um lado... Eu disse em voz seca:

- Você consegue, sempre conseguiu...

Não demoraria muito e eu já conseguia ver os espectros dançantes e opacos ruflando as asas poderosas contra aquele vento... Meus dedos crisparam a rocha, não sei se o que doía mais era a violação do curso natural que Deus impunha ou se o ato de aquele ser tocar-lhe a face e enxugar-lhe as lágrimas... Ah, meu coração deu seu tempo, o próprio parecia respirar e abrandar-se... Aliviado eu me sentia, e inútil ao mesmo tempo. Não me ergui, pois quando pude não foi necessário...

Voltei a tocar o queixo com os dedos curvados a observar apenas o curso do vento, se tocando, se entrelaçando, beijando meu rosto agora úmido e obscurecido...

 

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