27 de out. de 2009

Não os abandonei

Não os abandonei! Porém estou mais silencioso que de costume...
Tenho continuado observando cada passo e trejeito de meus protegidos, um tanto mais distante que o habitual, mas sempre prometendo dedicar-me a guardá-los.

Não me recordo de ter ficado tão contente quanto no dia em que a vi tomar suas próprias medidas e decisões... Estava radiante! Ainda metida no meio de muitos problemas, mas aquele era o início do fim de tantos outros. Lembro-me de meu coração impaciente querendo resgatá-la, descrevendo passos seguintes a tomar caso o fato demorasse muito mais a se resolver. Eu teria que enfrentar por ela e não me faria mal algum! O que me fazia recuar era a certeza de que tomaria para mim conhecimento inútil, tornando seu amadurecimento precário e tardio... Não o fiz, embora desejasse, no mais íntimo, terminar com tudo de uma vez. Erguer a lança e bradar a vitória!

Sentou-se ao meu lado. Eu estava agachado, empoleirado com o rosto virado em sua direção, sem sequer ser notado. Minhas mãos estavam unidas diante de meus joelhos e minhas asas retidas em minhas costas reluzindo fracamente o luar. O ambiente estava calmo, mas não em sua mente... Ela parecia estar coberta por dúvidas e demoraria certo tempo para que não houvesse mais nenhuma linha de preocupação em sua face. Apenas esperei pacientemente o momento certo para que conseguisse ouvir algo sair de entre seus lábios...

- Você está aí, não está? – ela balançava os pezinhos irrequietos pendurados além do parapeito da janela de seu quarto. Eu sorria de sua inocência, pois ela se referia a um ser imaginário que gostava de chamar de Tuuli.

- Eu sei que está. Calado, mas posso sentí-lo... – esticou a mão e traspassou sem querer o espectro invisível de meu rosto. Cerrei por completo os olhos e deixei que me tocasse e se sentisse acompanhada, segura...

Sorri para ela enquanto a mesma iniciava uma canção baixinha, com voz quase que forçada, porém com todo encanto que tinha direito...
Não demorou nada até que entrasse de volta e fechasse a janela ao comando de uma voz impetuosa que saia de dentro da casa. Quase tive um sobressalto, mas me deixei levar pelo resto de canção que foi carregada pelo vento.
Continuei lá, como se a voz fervorosa tivesse servido para mim. Lancei um olhar rente a enorme lua e seu tracejado prata, desejando-lhe boa sorte.
Sorria apaziguado: eu não os abandonei. Por mais uma noite eu iria permanecer em paz. Leve, imaculado e livre...

20 de jul. de 2009

Oceano ciano

Estava tranqüilo, sentado a beira do píer dando boas-vindas silenciosas ao Vento que há tanto tempo servira-me de resguardo. Ah, a doce calmaria... Tudo tão silencioso, mas tão irritante ao mesmo tempo... Mandava que carregasse pra longe de mim os sentimentos de dúvida, minhas mensagens vagas, minha indiferença...
Tão logo o tempo corria pelos finos dedos da vida, trazendo e manchando minhas asas de muitas conversas, muitas lutas, muito choro e muita vitória... Lembro-me que mesmo aqui onde estou fui confrontado por palavras espertas que me consternaram, me fizeram calar e novamente achar que em vão uso a língua para alertar. Olhando o horizonte, pra esse oceano ciano, sorri involuntário quando um dia balancei os braços comicamente pra alguém que estava perto, alguém que me falava sobre o segredo desse mar e o eterno romance das ondas tocando-se. Fixei o olhar na espuma salgada, o píer era tão largo que por um momento pensei estar dentro das águas...
- Gabriel se fora... – eu lhe disse enquanto sorria matreiro.
Ela me olhou surpresa. Em minha forma humana havia me confundido.
- “O Mensageiro” está ocupado agora, e os caminhos mais áridos não os confiaram a ele...
Sentou-se ao meu lado, não parecia temer... De tempos em tempos dizia algo. Era tão forte quanto aparentava, embora seus argumentos inspirassem fragilidade. Tão sábias eram suas palavras no mesmo instante que me surpreendiam e me chocavam. Como um ser daqueles conseguia facilmente intrigar-me? Ofereci minhas asas como abrigo, pois senti que poderia confiar, que era recíproco, que não havia veneno nem falsidade na maciez evidente de sua língua e na suavidade plumosa de seus lábios... Eu poderia rebuscar o ar aliviado...
Segui na frente, mas não me condenei a um cárcere, não eu que sou “O Livre”! Ela havia fincado os pés no píer, observado minhas asas ruflarem incandescentes e não tirou os olhos delas, não até que a cor do oceano a inebriasse...
- O andarilho das águas está prestes a ser tragado por suas próprias origens, prestes a quebrar os remos...
Ela parou. Em sua teimosia esperou que os instantes lhe respondessem como quisesse.
- A resposta, muitas vezes, pode estar bem abaixo do seu nariz...
Sumi dentro de um raio de sol, ao que primeiramente me assemelhei. Voltei a ter as asas alvas em companhia, o Vento, a melancolia. Que outra injustiça cometi para não ter-lhes logo?

17 de jul. de 2009

Like rain with pain

- Debaixo da chuva muitas pessoas se sentem renovadas... ou, como acontece no geral, encharcadas, com frio e arrependidas por terem saído na rua num tempo tão ruim. A vontade é de chegar logo em casa, de mudar as roupas, aquecer-se e tomar alguma coisa bem quente, só assim se sentiriam revitalizadas... É, agora tudo muda... Talvez eu seja o mais estranho: desta vez a chuva e o vento congelante abrasaram meu coração... Não via coisa melhor senão deixar que cada gota gélida de água caísse sobre a pele e a arrepiasse por inteiro. Permiti que todas as minhas roupas fossem molhadas e o contrário de que essas muitas pessoas possam sentir, não... Eu não me renovei...
Levei enxurrada de poças enormes de água suja na cara, daqueles carros que sem dó adoram sacanear um coitado que passa na rua... Não fazia diferença. A única coisa com que realmente eu deveria me preocupar era em ouvir o ploc ploc do gotejar da chuva, dos pingos que iam da ponta dos meus cabelos iluminados até o chão. Minhas costas já doíam por tanto tempo tê-las deixado inclinadas e meu cotovelos pareciam tão frágeis quanto vidro, enquanto, por horas, estiveram colados aos joelhos. Minhas mãos pareciam duas velhas senhoras, já passavam de seus 95 anos, tão enrugadas que chegavam a dar pena... Se eu me levantasse desse banco de praça agora certamente que a cada passada meus coturnos fariam barulho como plástico sendo machucado. Não querendo tirar a atenção de ninguém, e ninguém estava ali, permaneci subordinado de chuva e frio... Um poste de luz laranja clareando minha sombra, o gosto salgado na boca e a solidão... Não sou como as pessoas que gostam de lareira e chocolate quente, neste momento prefiro mil vezes sentir o que verdadeiramente um ser humano sente. E mesmo que esses litros de água não façam nenhuma diferença, eles só me ajudam numa coisa: limpam meu rosto da sujeira das poças e tornam o gosto da boca agridoce...



12 de jun. de 2009

Solitude

Eu hoje me sentei no lugar mais alto que pude encontrar. Eu até consegui ver o horizonte desaguando verticalmente, embarcações sendo engolidas por ele, adentrando aquilo que chamam de “infinito”. Poderia ver tudo e sentir cada um dos ventos se encontrando, tocando-se por um longo espaço de tempo até seguirem um só sentido... Eu achava aquilo romântico demais, até em meus dias mais sentimentais o beijo dos ventos em minha face e asas me faziam querer chorar... O queixo fino tomava conta da palma da mão, os joelhos dobravam e os pés tocavam a pedra fria. A figura melancólica de tão vastas asas claras estava sozinha, empoleirada e imóvel sobre um altar qualquer em que conseguia ver qualquer coisa...

As horas se arrastavam com suas correntes pesadas, provocando um barulho que não me tirava a paz, porém. Paz essa que fazia intricar os dentes, o excesso de tranqüilidade durara pouco... Sombreando os olhos com a mão consegui ver outro par de resplandecentes asas debatendo-se quase sendo tragada pelo horizonte abismal. Meus instintos trouxeram-me de volta, eu queria planar até lá e resgatá-lo, mas... A mão desceu até a pedra, suportando meu corpo para não inclinar-se para frente ao sabor do apaixonado vento. A cabeça pendeu para um lado... Eu disse em voz seca:

- Você consegue, sempre conseguiu...

Não demoraria muito e eu já conseguia ver os espectros dançantes e opacos ruflando as asas poderosas contra aquele vento... Meus dedos crisparam a rocha, não sei se o que doía mais era a violação do curso natural que Deus impunha ou se o ato de aquele ser tocar-lhe a face e enxugar-lhe as lágrimas... Ah, meu coração deu seu tempo, o próprio parecia respirar e abrandar-se... Aliviado eu me sentia, e inútil ao mesmo tempo. Não me ergui, pois quando pude não foi necessário...

Voltei a tocar o queixo com os dedos curvados a observar apenas o curso do vento, se tocando, se entrelaçando, beijando meu rosto agora úmido e obscurecido...

18 de abr. de 2009

Casa de Vidro

Chutei, soquei, com todas as minhas forças gritei! Chorei, esperneei, derramei toda a lágrima até que elas secassem finalmente e meus olhos não pudessem mais produzi-las. Numa caixa pequena de vidro eu via, transpassava meu olhar, mas minha mão não tocava. Não poderia chegar mais perto, eu não conseguia atravessar a barreira de moléculas invisíveis ou aquilo que chamam de parede. O pior de tudo é que eu enxergava tudo e nada podia fazer...
Ah, não... Não me deixem mais fazer isso! As minhas mãos pregaram no vidro, uma fechada, a outra espalmada e entre elas o embace do meu respirar ofegante... O choro audível era penoso... Eu te vi passar, rindo, gastando-se, seus olhos não acharam os meus enquanto tudo parecia ser prazeroso pra ti e o mundo caia todo em cima de mim. O som da conversa carregada de diversão de todas as formas doía em meus ouvidos e eu debatia-me de agonia. Aqueles que estiveram junto de ti neste momento, negaram meu desespero, atenuaram o olhar como se assustados e temerosos, te levaram, te arrastaram com correntes moleculares, te distanciaram de mim... Despedacei-me, meu corpo desfigurou-se... Queria-te de volta, mas era impossível. Sentado sobre as próprias pernas e sobre o mar de tristeza líquida inundando minhas vestes opacas: observava, imaginava...
Tocaram-me o ombro tentando trazer este ser de volta a realidade, mas eu já estava tão submerso em solidão e melancolia que mesmo ao sorrir eu estava sério, vazio. Meus olhos só conseguiam traçar o teu caminho, depois de tanto tempo era apenas a ti que gostariam de seguir, teu andar perdido... Nesta casa de vidro a última coisa que eu quero é permanecer nela. Tudo o que eu vejo daqui me consome, não conseguir alcançar me leva a loucura, encarar-me o reflexo, tentando-o fazer desaparecer... Eu quero sair, eu estou dando minha vida para isso!

5 de fev. de 2009

O Adeus de Misael

Nos quatro cantos eu os ouvia... Ouvia os brados, o pesar somente em sua voz... Por todos os lados fui cercado, condenado por algo que sequer possuía provas. Não as havia, não estavam lá, mas mesmo assim fui condenado. Uma vez que me senti tão livre quanto a um pássaro em poder contemplar a meus irmãos de forma tão singela, eis que me mostravam as garras e as cravavam em meu coração. Repudiavam-me e mesmo que eu estivesse inconseqüente, continuavam esbravejando e cuspindo em meu rosto. Eu estava condenado... Preso, infeliz e infinitamente, em seus jogos sedutores. Faltou-me calma, eu cumpria com aquilo que me fora destinado, mas com o tempo fui fraquejando... Não podia dizer adeus, este corpo, estas asas, não voaram longe... Estiveram sempre por perto quando mais precisaram e por mais que não conseguissem enxergar, por mais que deixassem que outros ferissem seus olhos e me esquecessem, servi de guarda invisível. Pois é isso que eu faço, eu os cuido, eu os zelo. Dói-me ver lágrimas correndo por suas bochechas, pois é como se arrancassem de mim todas as penas e me lançassem contra meu inimigos, eu somente, quieto e sem forças. E apesar de por vezes meu sussurro não os chegar aos ouvidos, em uma outra hora estarei lá para eles... Para meus irmãos. Personificando compaixão mesmo que por vezes pareçam indignos... Este sou eu, que em meio aos flagelos da alma, em meio às atrocidades e culpas que me fazem carregar, com feridas perpétuas sobre as asas, pretendo ser sempre verdadeiro... Eis o que eu digo, sentirei falta... Todos os laços que nos uniam, todos os momentos, até aqueles impertinentes, que sempre nos fazíamos lembrar, já não existem mais... Eu não errei em protegê-los, não me arrependerei nunca de nada, mas levarei comigo tudo o que conquistei... Eu não tentei assassiná-los... Não pretendo mais rogar sua presença, nem tirá-los loucamente dos seus próprios caminhos para que sigam o meu. Mas se um dia os feri, se um dia com ódio me viram falar, eu peço perdão, mas não espero que me perdoem, pois por mais que eu tente, por mais que eles mesmos venham a tentar, eles não conseguiriam mais me ver por perto... Obrigado, por tudo...




23 de jan. de 2009

Desta vez sim




Minha confiança se esvai como areia fina por entre os dedos. Eu que há tanto tempo atrás cria veemente que esses seriam meus melhores momentos, que eu não acharia nenhuma bifurcação de caminhos, que escolheria sempre planar de nuvem para nuvem simplesmente. Mas à medida que ferem minhas asas e meu coração é perfurado sem dó, não há escolha entre caminhar ou sentir a brisa friorenta na face quando alçava vôo. Eu via qual o melhor caminho, eu conseguia enxergar e escolher, e acima de tudo me sentia livre sorrindo em conclusão. Desta vez em meio à discórdia, gritos e sussurros ferinos, que serviriam tão somente para esmigalhar meu coração, houve paz em instantes... Um alívio, uma sensação de liberdade que almejei tanto sentir... Desta vez eu ergui meus punhos em vitória, pois tive certeza de que perdi a dependência, que meus grilhões caíram no momento em que abri os braços para abraçar o Vento tão delicioso... Meus irmãos entenderão o que se passa com apenas um olhar. Aqueles que me encobriram com suas asas entenderão... Que não há como me prenderem, que não se retira a liberdade nem que se tente.

 

Um Relato de Misael © 2008. Chaotic Soul :: Converted by Randomness