- Eu sinto muito, Nau... Sinto por não ser perfeito...
Misael lamentou-se, pois vivia de lamúrias e das angústias que a raça humana lhe impunha, como um pisotear longo e dolorido. Nau, que há muito tempo o conhecia, desaparecia e seu rastro agora era quase invisível. Ele queria esquecer-se, deixar de lado momentos bons e quase-brigas, deixar de lado quem ela nunca fora na sua tão drástica e torturante vida sob asas ao Vento... Num momento ou outro Misael queria ver-se longe, queria que não houvesse memória tão pouco lembranças. Queria jogar-se, nunca mais poder encara-la nos olhos esmaecidos e cinzentos... Onde estava este par tão violento? Onde estava o olhar onde Misael pousara o seu próprio e tantas vezes chorava por estar distante? Ah, quantas vezes o Anjo fora alimentado por esperanças vãs que de nada serviam senão para machucar e machucar mais... Onde está quem prometeu nunca abandona-lo? Ele sim poderia enfiar-lhe uma espada e atravessar o coração de gelo pelas angústias que Nau o deixara usufruir... Humanos são só humanos e a questão é: quando irão nos reconhecer?
- Eu sinto muito, Nau... Mas é a hora de partir...
O preço do abandono é pago na mesma moeda. Misael não poderá voltar a vê-la, seria destrutível, seria desgastante... Como engolir uma única gota de água quando se tem muito mais sede... Misael pode tocar-lhe os cabelos loiros quando o Vento puxava-lhe para fora de seu quarto...
- Onde esteve você quando mais precisei? – dizia uma voz embargada num choro angustiante, que não saia, era criança esperneando dentro de uma caixa de papelão com medo do escuro que a envolvia... E ninguém conseguia tira-la de lá. Não havia buracos por onde se olhar, nem a Luz era capaz de transpassa-la. Misael estava morrendo ao abandono que sua antiga guarda o destinara... É por isso e por mais trezentos outros motivos que Misael não se queixa de não guardar, ele é a diferença entre Guardião e Anjo, finalmente... A mão quase foi capaz de arrancar os cabelos dela, enquanto como pluma suave quase não era percebida. Os olhos de Nau estavam fechados em sono, e para ele. Estava cega, surda, muda, sua pele não sentia mais o toque do Anjo...